Nesta série de estudos, de que se trata? Transcrever em história a fábula das Jóias indiscretas.

Dentre seus emblemas, nossa sociedade carrega o do sexo que fala. Do sexo que pode ser surpreendido e interrogado e que, contraído e volúvel ao mesmo tempo, responde ininterruptamente. Foi, um dia, capturado por um certo mecanismo, bastante feérico a ponto de se tornar invisível. E que o faz dizer a verdade de si e dos outros num jogo em que o prazer se mistura ao involuntário e, o consentimento à inquisição. Vivemos todos, há muitos anos, no reino do príncipe Mangoggul: presa de uma imensa curiosidade pelo sexo, obstinados em questioná-lo, insaciáveis a ouvi-lo e ouvir falar nele, prontos a inventar todos os anéis mágicos que possam forçar sua discrição. Como se fosse essencial podermos tirar desse pequeno fragmento de nós mesmos, não somente prazer, mas saber e todo um jogo sutil que passa de um para o outro: saber do prazer, prazer de saber o prazer, prazer-saber; e como se esse animal extravagante a que damos guarida, tivesse uma orelha bastante curiosa, olhos bastante atentos, uma língua e um espírito suficientemente bem feitos, para saber demais e ser perfeitamente capaz de dizê-lo, desde que solicitado com um pouco de jeito. Entre cada um de nós e nosso sexo, o Ocidente lançou uma incessante demanda de verdade: cabe-nos extrair-lhe a sua, já que lhe escapa; e a ele cabe dizer-nos a nossa, já que a detém nas sombras. Escondido, o sexo? Escamoteado por novos pudores, mantido sob o alqueire pelas mornas exigências da sociedade burguesa? Incandescente, ao contrário. Foi colocado, já há várias centenas de anos, no centro de uma formidável petição de saber. Dupla petição, pois somos forçados a saber a quantas anda o sexo, enquanto que ele é suspeito de saber a quantas andamos nós.

(…)

Convém, portanto, perguntar, antes de mais nada: que injunção é essa? Por que essa grande caça à verdade do sexo, à verdade no sexo?

Na narração de Diderot, o gênio bom Cucufa descobre, no fundo do seu bolso, entre umas bagatelas — grão bentos, imagenzinhas de chumbo e drágeas emboloradas — o minúsculo anel de prata, cujo engaste, revirado, faz falar os sexos que se encontram. Dá-o ao sultão curioso. Cabe-nos saber que anel maravilhoso nos confere tal poder, e no dedo de que mestre deve ser colocado; que manobras de poder permite ou supõe, e como cada um de nós pôde se tornar, com respeito ao próprio sexo e aos dos outros, uma espécie de sultão atento e imprudente. Esse anel mágico, essa jóia tão indiscreta quando se trata de fazer os outros falarem, mas tão pouco eloqüente quanto a seu próprio mecanismo, convém torná-lo loquaz por uma vez; é dele que é preciso falar. É preciso fazer a história dessa vontade de verdade, dessa petição de saber que há tantos séculos faz brilhar o sexo: história de uma obstinação e de uma tenacidade. O que é que pedimos ao sexo, além de seus prazeres possíveis, para nos obstinarmos tanto? Que paciência, ou que avidez é essa em constituí-lo como o segredo, a causa onipotente, o sentido oculto, o medo sem trégua? E por que a tarefa de descobrir essa difícil verdade se tornou finalmente convite a suspender as interdições e a desatar os entraves? Seria o trabalho tão árduo a ponto de ser preciso encantá-lo com tal promessa, ou esse saber terá ganho um preço tal — político, econômico, ético — que foi preciso, para sujeitar cada qual ao trabalho, assegurar-lhe — não sem paradoxo — de encontrar nele sua liberação?

– michel foucault, História da sexualidade, vol. I.

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